domingo, 4 de julho de 2010

Do alto.

Um metro e sessenta e três e meio. Essa é a minha medida numa sexta-feira em que acordo cansada. Na segunda, provavelmente terei crescido oito ou dez centímetros. Preciso ser alta umas três ou quatro vezes por semana.

Não me faltam opções. Saltos finos, grossos, redondos, quadrados, retos ou curvos, com ou sem plataforma, sensuais ou clássicos, em modelos abertos ou fechados. O salto alto, sim, é o melhor amigo de uma mulher, já que os diamantes não são para qualquer uma. E os diamantes, ah, os diamantes não deixam nenhuma panturrilha musculosa num piscar de olhos.

Quando acordo me sentindo glamourosa, coloco um salto pra ficar de acordo. Quando acordo exausta, coloco um salto pra levantar o ânimo. Depois de um fora, o salto é perfeito para disfarçar o moral lá embaixo. Distraído com uma perna bem torneada, quem irá notar um coração destruído?

Em cima de um salto, não sou alguém que acorda exausta todas as manhãs, nem a que se preocupa em sortear a conta em atraso do mês. Em cima de um salto, ergo a cabeça e sigo em frente. Não ando: flutuo. Passeio fluida por uma elegante irrealidade, povoando em câmera lenta o imaginário de quem fica.

Não paro para olhar, mas sinto que isso acontece. Por alguns segundos, até fecho os olhos para imaginar as cabeças girando noventa a cento e quarenta e cinco graus em minha direção. Mas logo os abro de novo, pois os saltos podem ser perigosos. E sigo em frente, cabeça erguida, humilhando com charme quem fica para trás. E o que caminha comigo é a fantasia de cada um. Com direito a trilha sonora.

Isso, se eu não cair.

Porque aí a imagem fica mais lenta e merece replay.

Foi o que aconteceu outro dia, quando retornei lânguida e loira à mesa que eu ocupava num restaurante em pleno mall. Eu usava uma inocente sandalinha de salto médio. Mas a tábua corrida e a cera haviam se unido contra mim. E lá se foi a minha sandália patinando pela madeira encerada. E o que virou noventa graus foi meu pé direito, que me levou a deslizar alguns metros, apoiada sobre um tornozelo torto que fazia as vezes de planta do pé. E o movimento em slow motion não foi dos pescoços alheios, mas das minhas pernas se abrindo em desengonço.

Uma cena digna dos programas de fim de domingo.

Em minha memória, aqueles segundos parecem ter durado alguns minutos. Ainda ouço o som das cadeiras pesadas e da mesa que arrastei comigo, numa queda-dominó interminável.

Se foi inesquecível para mim, o que dirá para os outros. Está certo que doeu mais em mim, especificamente na alma, já que o tornozelo ralado e o joelho direito só me levaram a mancar algum tempo depois.

Gosto de me lembrar do momento em que abri de novo os olhos e vi um senhor de cabeça branca, de prontidão, preocupado em verificar quantos e quais tinham sido os estragos. Quando ele finalmente me alcançou – custei a parar –, eu estava como o John Travolta ao final de uma coreografia em "Saturday Night Fever". Com uma diferença: eu usava um vestido tomara-que-caia, cuja saia em lápis subiu até o meio da coxa durante a queda.

Gosto de imaginar cada segundo daquela longa cena. De me lembrar da demora em enxergar alguma coisa e de quando eu finalmente olhei para cima e vi aquele senhor. Gosto de recordar a expressão dele. E me pego com um risinho no canto da boca, a reviver pequenos flashes daquele episódio ridículo que passa a integrar o meu inventário de casos para contar.

Quantos têm a sorte de andar por aí levando sua piada particular, em que se é nada menos que o protagonista? E quem não adoraria ter discretos acessos de riso no meio da rua, como se alguém lhe fizesse cócegas, invisível?

A lembrança do tombo – e as gargalhadas que vêm a reboque – ainda vão me acompanhar por muito tempo.

Demorei a aprender a rir de mim mesma. Vivi uma boa metade da vida sem essa sabedoria.

Quando eu estava começando a levar a vida menos a sério, tive um professor na faculdade que me ensinou a diferença entre humor e ironia. "Uma mulher pobre se veste de rica no carnaval. Isso é humor. Uma mulher rica se veste de pobre no carnaval. Isso é ironia." Nunca me esqueci das palavras do querido Renato de Pinho, que me ensinou muito mais que redação publicitária.

Aparentemente, ninguém riu do meu tombo – seria ironia. Mas eu posso rir à vontade – e me canso de fazer isso. Posso gargalhar até doer a barriga. Mesmo porque me dóem também os joelhos e o tornozelo.

A queda no shopping agora faz parte da minha vasta galeria de casos engraçados, juntando-se à caminhada a pé para Nova Lima, cujos guias se perderam no caminho; à minha primeira viagem de avião, em que a aeronave estragou na primeira escala e passei o resto do trajeto ouvindo meu pai me chamar de pé-frio; ao dia em que saí da garagem dirigindo o Opala 77 da Mamãe e, só alguns quilômetros depois, pude notar em cima do capô um conjunto de prato, pires e xícara que o jardineiro colocou ali depois de lanchar. E por aí vai.

Que me desculpem os que se levam muito a sério: saber usar salto pode ser importante, mas saber cair dele é que é fundamental.

Texto escrito para a edição de junho da Revista Encontro.
Clique aqui para ler online.

41 comentários:

Lelle disse...

Amei o texto Pequena. Agora um segredo, sou homem o suficiente em assumir que minha alma usa salto e - torço - acredito que ela também saber cair dele tão bem quanto você. Saudades da São Paulo que sente sua falta...

Alessandra - Lain disse...

gargalhei com a história do opala. Tb já fiz isso, mas foi com uma sacola de supermercado..rs.bjs

Kakaya disse...

Adoreeeeeeeeeei!

Priscilla Castro disse...

Texto magnifico!!!
Quero mais videos!!
Amei demais!!!

solta disse...

Opinião de jornalista portuguesa: que belo texto!

VERÔNICA disse...

Quem nunca teve seu dia de Lady Gaga??
rsrsrsrrs

bjs

brechoparaquemechic@bol.com.br

Roberta disse...

Sábia! Adoro gente sábia! E acompanhada de bom gosto... E de bom humor... É para poucos... Parabéns! Por ter aprendido com a vida e por me ensinar! Beijos

Lourdes Tayt-Sohn disse...

Ahh, eu adorei o texto. Bacana mesmo o post. bju

Bia Carreiro disse...

É muito bom poder rir de si mesma. Isso eu aprendi desde cedo porque sou muito desastrada e pra sobreviver tive que saber rir de mim.
Bjos Cris

Flavia disse...

hahahHAhahahahAhahah bom, cair é minha especialidade (não preciso nem de salto para isso). Semana passada msm, eu, em pleno horário de almoço, tropecei em uma escada na frente de um banco quando ia pegar um táxi hahahhahahah caí no chão, me levantei e chamei o táxi, como se fosse natural aquela queda e como se o fato de ninguém ter me auxiliado não fizesse diferença. Adorei o texto (aliás, como eu sempre adoro).

Elina disse...

vc escreve igual a minha sobrinha de 12 anos

Aure disse...

Perfeito como só vc sabe fazer Cris! Adoreiiii e me identifiquei como boa desastrada q sou! Beijo
Aure!

Deveria estar estudando disse...

Fantástico, Cris! amei o texto.
Ele me lembrou o dia em que aproveitei que não vinha carro e mesmo com o sinal fechado para pedestres, corri pela faixa para chegar no prédio em que fazia estágio. Claro que cai no meio da pista, o salto quebrou...e os carros vieram e tiveram que parar para mim. Rasguei o jeans e o joelho saiu do lugar.E daí para frente fiquei conhecida como "a estagiária que caiu em frente à Justiça Federal".
Para minha sorte, tive uma amiga que foi em casa para me emprestar um sapato.
Mas parei o trânsito na hora do rush! hehehe, ah, parei!

Marcela Greca disse...

òtimo!

adoro ler quando você escreve...

Cris... beijo...
quero escrever como você... alguns dizem que escrevo bem! fico feliz!

JULIANA disse...

Talvez amanhã eu saia de salto alto. Mesmo com o joelho já não valendo muito. Quem sabe a dor do joelho amenize a dor do fim?

Texto magnífico. Um olhar poético sob um fato banal.

E o melhor de tudo... saber levantar-se.

Juddie Carvalho disse...

Adorei o texto. Sensacional! Ri lendo e lembrando das quedas que tive (que foram várias!). kkkk Bjo

Olívia Palito disse...

hahahahaha
adorei, meu marido sempre fala dos saltos altos nas mulheres... ele fica com raiva,pq fico mais alta q ele e inventa toda vez q eu vou cair e passar um vexame, mas é bom mesmo saber cair de cima deles, já q a gente pode rir na rua, do tombo, sem ninguem mais saber do q aconteceu...
hahaha
bjks
Pri

odette castro disse...

Para Elina,

Te confesso um segredo, a Cris estava começando a escrever,quando me apaixonei por ela. Tenho um fraco especial por escritores,estes que além de escreverem bem, o fazem o com a alma.Por favor, me mande algum texto de sua sobrinha. Quero aplaudir este talento que tão novinha, já se inicia no mundo tão maravilhoso das letras. Um grande abraço.Odette, mãe da Cris.

valeriaterena disse...

KKKKKKKKKKKKKKKKKK
Que mulher nunca caiu do salto?

Só de lembrar como eu era desengonçada quando comecei a andar de salto, já começo a rir. Tente imaginar a macaca Chita de salto, e verá o que era eu lá pelos 13/14 anos.

Vanessa Tanaka disse...

Passei alguns minutos imaginando e rindo a cena do jardineiro...
rs

Parabéns pelo sucesso do blog.
Adoro!

Valéria Pacheco disse...

S-E-N-S-A-C-I-O-N-A-L!!!

Quando crescer quero ser como você!!! rs

Bjossss lindona!

Layla Barlavento disse...

A melhor definição para uso dos saltos que já li. E olhe que já falei no meu blog sobre isso. (num outro contexto é claro!) Mas o melhor mesmo é saber cair e o socorro cavalheiro em seu amparo. Mesmo que tenha havido outras intenções... Isso também faz bem a alma!

Beijos na sua!
Layla Barlavento
culpadowalter.blogspot.com

Clau disse...

Sensacional!
Eu quase não uso salto apesar de ser baixinha, mas qdo uso, fico bem atenta, pq tb já caí! rs
E tem coisa melhor do que rir de si mesmo? Eu vivo dizendo que, qdo me dei conta de que ser ridículo era bom, comecei a ser mais feliz! :)
Bjo grande!!

Unknown disse...

Que tombo mais glamuroso!!
Uma vez o meu gentil e querido namorado parou quilômetros do lugar que estávamos indo, e as calçadas não eram nada agradáveis para um querido salto Luiza Barcelos, a consequência foi um lindo tombo com direito a briga dele só porque tinha escolhido o sapato errado!

Beijão!

Camila Godoi disse...

Cris, adorei! Me impressionou como de uma quase trajédia você conseguiu tirar e ensinar tanta coisa bacana. Confesso que experimentei umas 5 sensações fortes, marcantes e diferentes ao ler a sua história! Saber viver é isso.
Beijo Camila Godoi

Patrícia disse...

Adorei!
Me identifiquei muiiittto!
Já andei com um drive de computador em cima do capo do carro, só percebendo quando tudo caiu no chão, na hora da curva...
Cair na rua então... é fatal... a ultima vez me arrebentei, que uma calça social precisou virar bermuda e o joelho ainda tem marcas... mas dou risada disso tudo pois isso é que vale a pena!
Beijos

Ana Paula Torquato disse...

Te acompanho ,diariamente, à risca e nunca postei nem se quer um "adorei o texto". Mas em especial esse texto me impulsionou a tomar uma decisão, que até então estava morrendo de medo! Como sua queda...vou morrer de dar risada desses momentos difíceis que passamos. No final dá tudo certo, mesmo que tenhamos que encarar um joelho ralado...

Freedom disse...

Aos 28 ainda estou aprendendo a rir de mim mesma! Um dia eu chego lá!
Sobre o texto, é eu ficar me repetindo: Ninguém toca meu coração com palavras como você! Mesmo que seja sobre uma queda, saber se levantar com dignidade é o "X" da questão. E como você sabe!
Na melhor das intenções do mundo Cris, sou apaixonada por você!
E sobre a sobrinha da Elina que aos 12 anos escreve tão bem quanto você, estou realmente bastante curiosa. D.Odete, quando receber o texto poderia fazer a gentileza de enviar para freedom.ingrids@hotmail.com ?
Um beijo.

Sônia disse...

Cris,
sou uma pessoa, na maioria das vezes, mal humorada,não porque eu queira isso, já fui muito bem humorada mas a vida me tirou isso "rir de mim mesma". E hoje, como todos os dias, abro seu blog e vejo uma crônica tão linda como essa, que me fez ficar com "aquele" risinho no canto da boca, não pelo seu tombo, mas por todos os meus. Do alto dos meus 51 anos quero voltar a dar gargalhadas dos meus tombos e desastres cotidianos. Vc me ensinou isso, com este texto lindo, sensível e engraçado. A próxima vez que ter encontrar na rua ou no shopping (já foram 3 vezes)vou me apresentar, e falar pessoalmente o quanto te admiro.
Obrigada por fazer da minha segunda-feira um dia mais feliz.
Bjo.

Roberta disse...

Sônia, você devia ver o outro blog da Cris, o "para Francisco". Você vai ver o que é levantar de um tombo! Tenho certeza que vai adorar e te ajudar, como eu adorei e como me ajudou! Beijos!

Izabella disse...

Cris, adorei o texto. Divertido, leve.
Eu me enxerguei exatamente na queda. Eu sou especialista em quedas com salto, sem salto e até descalça. Dou cada mortal duplo carpado que qualquer ginasta perde para a minha elasticidade (e fragilidade).

Beijos!

ADRIANA disse...

amei o texto. uma realidade de forma divertida

Tatiana Lambert disse...

Poucas vezes vi uma frase resumir quase tudo na vida: "saber cair do salto é fundamental"! Só vc para traduzir isso em palavras.

Unknown disse...

Te acompanho há mais de um ano, quando te descobri por acaso... Desde então, já estive muitas vezes para postar algum comentário, sempre mais estimulada pelos textos do que pelas maravilhosas e inspiradoras composições. Já me emocionei, me identifiquei, te admirei pela força e simplicidade que se fazem presentes e inquestionáveis mesmo através da internet. Mesmo assim, sempre hesitei e acabava desistindo.Achava meio desnecessário e sem sentido... Mas hoje, quando li esse texto, não resisti!!! Impressionante sua capacidade de transformar adversidades em algo perfeitamente aceitável e até divertido! E impressionante como consegue se expressar através da escrita com tamanha facilidade e clareza! Com certeza, foi isso que me fez te acompanhar até aqui. Sucesso, sempre!!!

Lu disse...

é isso saber rir de nós mesmas é fundamental.. para levarmos a vida!! eu também cai no shopping há muitos anos e foi inesquecível e engraçado.. até hoje dou boas risadas!!

Branca disse...

Ah meu Deus, eu preciso aprender a andar de salto pra ser assim PODEROSA ^^

bjinhos

amei tudo aki

Dazeuropa disse...

Lí esse texto no momento certo! Estou em um momento complicado da minha vida, sem saber o que fazer para ajudar a minha familia, não sei onde encontrar trabalho aqui na Espanha e milhões de outras historias.
Bom, eu interpretei o texto como uma maneira de ver as mudanças, que podem ser reais ou simbólicas, como possibilidades para que um sujeito possa reinventar-se.
Enfim...os saltos e o olha que recebemos dos outros depois da queda podem nos ajudar a ver o mundo desde otro ponto de vista.
Forte abraço e obrigada por existir.

Juliana disse...

Cris!!
Eu sofri com a narração dessa queda!foram longos minutos.

No meio do meu caminho disse...

Adorei seu texto! Muito bem humorado! parabéns e obrigada!

Virginia Domeño disse...

Pois é, hoje comencei usar saltos!!!, depois de ler o seu texto e de ter muita vontade de os usar desde faz muito tempo, chegou a hora. Estou pronta nao sei se para os usar, mas sim para cair e para rir, e isso é que é bom!!!
Obrigada pelos suas palavras, adoro!.
Desde Espanha, continue assim e tudo de bom pra voçe.

Nínive Lage disse...

Como diria Ney Matogrosso: divina e maravilhosa!

Bom finalzinho de domingo.

Muah!